quinta-feira, outubro 29, 2020

RENASCIMENTO

























Eu hei de sempre pensar que te encontrei
Na curva brusca em que o meu riso derrapara,
Naquele abismo soturno onde pensei
Que o coração em desespero se lançara.
Mas veio o dia, com a esperança que seduz,
Também o encanto, a magia e o teu perfume
E das cinzas da fogueira já sem luz
Se acendeu, incontrolado, um novo lume.
E tudo junto apareceu dessa maneira,
Em desgoverno e num arroubo de paixão
Vieram canto e palavra, em cachoeira,
Veio um amor que não é desta dimensão.
Aníbal Raposo
2020-10-29
(pintura de Naomi Walker, UK)

sexta-feira, outubro 23, 2020

SEGURO AS TUAS MÃOS


 















“Injured Kurdish Fighter Receives Hospital Visit” by Ivor Prickett, Ireland, for The New York Times. Nominee, World Press Photo of the Year.
Ahmed Ibrahim (18), a badly burned Syrian Democratic Forces fighter, is visited by his girlfriend at a hospital in Al-Hasakah, Syria, on 20 October. She had at first been reluctant to enter the room, as she was horrified by his injuries, but a nurse persuaded her to go in to hold Ahmed’s hand and have a short conversation.


Seguro as tuas mãos, amor,
desfeita, com o coração em chamas.
Não consigo encarar-te de frente,
suportar os teus olhos a arder
nesse oceano de fúria onde desaguaram
as águas lamacentas dos rios do ódio.
Sei que às vezes é preciso
e urgente lutar por aquilo
em que acreditamos.
Mas isto?
É isto que todos queremos?
Quantas mais cicatrizes de fogo
desenhadas no nosso corpo, na nossa mente,
na nossa pele, serão necessárias?
Quando perceberemos
que nos devemos poupar
porque somos tão pequenos e tão raros?
Apaguem as luzes das cidades,
saiam para a rua, dos caixotes onde vos encerraram,
e olhem para o céu.
Talvez compreendam o sentido da existência
quando sentirem a grandeza da vossa insignificânia.
Aníbal Raposo
2020-10-23

domingo, setembro 27, 2020

DOMINGO À TARDE

 


















Fui ao centro da cidade
Para a cabeça arejar
Encontrei um caranguejo
Numa pedra a descansar

Tinha bocas a vermelho 
E com as pernas mexia
Um fato às ricas, prezado,
Trejeitos de fidalguia.

E dei por mim a pensar:
- Ele há animais com sorte!
Lá Rocha, na fajã,
Nunca terias tal porte.

;)



quarta-feira, agosto 26, 2020

O RIO


(ao meu amigo Antero Ávila, autor da fotografia) 

Há um desafio
Naquilo que serei, não no que fui. 
Há sempre um rio
Plantado onde o sonhei e a água flui.

E um deserto
A desaguar no mar da confiança
E o barco certo
Onde navega o luar da minha esperança. 

O amor é um rio
Fora das margens que o querem suster. 
Um desafio, 
Ave improvável na curva do viver. 

Há um sol vermelho
A iluminar as arcas da memória. 
E um grande espelho, 
Retrata em sangue toda a minha história. 

Aníbal Raposo
Carapacho, Graciosa.

Agora o Antero vai continuar a linda música que começou no tom de lá menor.

domingo, agosto 09, 2020

GATOS E MELODIAS


Publico fotografias 

P'ra validar certos factos 

Tenho algumas melodias

Com ciúmes dos meus gatos.


Pôr um "gosto" nada custa

Num bichaninho pirralho. 

Já ler e ouvir, que desgosto, 

É coisa que dá trabalho... 


Aníbal Raposo 

😂😂😂

segunda-feira, agosto 03, 2020

UTOPIA

















Utopia é um horizonte
Que não se pode alcançar.
Se tens sede ela é a fonte
Que te põe a caminhar.

Aníbal Raposo
(conceito de Fernando Birri)

quarta-feira, julho 29, 2020

JOGOS DE PIÃO


Chega mulas, bezaninas
De bucho, mais redondeiros
Tudo piões asseados
Para jogar nos terreiros
Cabeçais bem protegidos
Com pioneses, aí não...
Os piões mais pretendidos
Tinham ferrões de latão
"Molha" riscada no chão
E difícil de acertar
Até partia o coração
Se era o nosso a arrear
À roda dos cinco nicos
Quem nesses tempos jogou?
Se rachares deita p'ro lume
O que sumiu já pagou.

Aníbal Raposo


DA OUSADIA


No meio da tempestade
sou eu que seguro a roda do leme do meu barco. Deram-me asas de chumbo? Garanto-vos que, querendo, acabo por voar. Aníbal Raposo



terça-feira, julho 14, 2020

ABC DOS APELIDOS DA RELVA



Amo a Relva e a sua gente
Nela moro e fui nascido
Espero sinceramente
Que ninguém tenha esquecido
Morde a sardinha o anzol
E dizem que o morde bem
A seguir despejo o rol
Sem ofensas a ninguém:
Águas Mornas, Ariôs
Arrenca Junças, Avanças
Mais Badocos e Baeles
E os demais doutras danças
Bagaços e Barriganas
Belanchas e Batizados
Bexigas, Blicas de Prata
Todos aqui nomeados
Blicas Sardinhas, marotas
Mais Bonecos e Buzinhos
Cabeceiras e Caçoulas
E Cafés, bem tiradinhos
Cagas em Pé, Cagalhãs
Mais Canários e Canelas
Há Caracóis e Fajãs
Caranguejos, Carambelas
Carapantas e Charrinhos
Choronas, Coques, Cupidos
Há Faiais e Frangaletas
E Garotos atrevidos
Gerais, Giestas e Ginas
Grilos, Guerras e Impossíveis
Laparosos e Limpinhos
E Lisboas bem temíveis
Há Lourinhos e só Louros
Macarrões e mais Malãs
Malassadas e Malucos
Marianos e Vintans
Também Maricas, Marrecos
Maximinos e Mogangos
Merdas Azedas, Morinhos
E outras danças e tangos
Há Pazés, alguns Padeiros
Pá Fortes e Papaús
Pão Quentes e Perigosos
E que mais há, meu Jesus?
Pés de Chumbo, Picapaus
Há Pipis e mais Rancheiros
Mais bons Repeidas e Rolhas
Santas Marias, porreiros
Sacos de Peidos, Salgados
Salsas, Seguros, Salgueiros
Sacas Negras e Serôdios
Também alguns Sapateiros
Solturas Verdes, Supicas
Tremocinhos, Vegim Vegins
E mais Ventos Encanados
E outros ventos afins
Virilhas Secas, Vermelhos
E Vidas há, Vinte e Cincos
Corninos, muito Zangados
E os Yes! Tudo nos trincos
...
São noventa os apelidos
Que contei aqui num triz
Se recordas mais alguns
Não os guardes p'ra ti, diz.
...
Então p'ra acabar a lista
Com a ajuda de vocês
Noutros coloquei a vista
E contei mais cento e três.
No meu rol dos esquecidos
Que assumo, pecados meus,
Há Bichinhas e Gravatas
Frescuras e Benza Deus.
Piaçabas, Trinca Unhas
Lavaredos e Pingões
Há Chicas e Cachanetas
Castelos, também Paixões
Cagadiças e Molinhos
Lavadeiras e Manquins
Merdas de Cão e Ranhosos
E Cabeças bem ruins.
Há Galinhas e Badoucas
Caramelos e Ão Ão
Malhadas e Pernas Gordas
Raças e Merdas de Cão.
Cheira os Ombros e Pá Razos
Pataratas, Escanchados
Bufas, Coriscos, Romeiros
Mais Chaladas e Pelados.
Besugos, Bogas, Cabitas,
Danças Azuis e Cagarros
Há Dourados e Espertos
E Larós que são bizarros
Há Galochas e Reboques
Adoras e Pés Inchados
Também Bocas de Borracha
E Feliças asseados
Mais Levinhos e Manias
Merrinhos, Mija Vinagres
Milhos Novos e Palitos
Pelés e Rivas, milagres!
Perús, Pincéis e Pombinhas
Rabiças e Rabuçados
Mais Requetas e Sapucas
Tudo nomes bem prezados
Sinsenharas e Suspiros
Mais Tonecas e Vassouras
Papichas, Nabos e Esticas
Para as gerações vindouras
Caçopos, Cherês e Pinas
Maganos e Lagareiras,
Largados às suas sinas
E com alcunhas certeiras
Minhocas há e Feitores
Mais Gordinhos e os Da Alta
Cobradores e Revisores
E Da Branca, boa malta.
Da Burra, também Da Benta
Miúdos e Sacristãs
Caça Minas e Vavôs
Plamonas e Cidadãs
Os Cravos e os Da Fonte
Os Carecas e os Manecas
Chouriços e Da Rabeca
Das Patas e Patiecas,
Sem esquecer Ramalhetas
Salemas e, oh pachorra,
Campainhas e Gorjetas
Batatas, Xexés e um Zorra.
Ufff!!!
Aníbal Raposo
(Salgado)
2020-07-14
🙂

segunda-feira, junho 01, 2020














Bem sei e não me esqueço
Que há anjos comportados
De grande cortesia,
De modos recatados.
Assomam, como importa,
Em situações discretas.

Mas também reconheço
Que há outros, tão chanfrados,
Que em plena luz do dia,
De branco e bem alados,
Passam à nossa porta
Montando bicicletas.


Aníbal Raposo


Foto de Josef Koudelka



quarta-feira, maio 27, 2020

























DO VOO DAS AVES

Não é adiáforo
o facto das aves
nos voos que encetam
escusarem semáforo.

Aníbal Raposo

Foto de Curt Oswald Schaller (Alemanha)


segunda-feira, maio 25, 2020

GATOS


Gosto de animais contudo, atenção,
não por igual, pois surgem alguns factos
que me conduzem à constatação
de adorar cães mas perder-me por gatos.

Aníbal Raposo

























A PORTA
Tenho p'ra mim uma certeza que conforta
a minha vida e me alegra de algum modo:
uma guitarra é como a chave duma porta
que, ao ser tocada, me franqueia o mundo todo.

sábado, abril 04, 2020


























CORDA BAMBA

Na senda da escrita pus-me a caminhar.
Num tem-te não caias, viso assegurar
Que a palavra é justa, clara e não descamba.

Atalhos fortuitos, duros de verdade,
Arte de trapézio, fere a gravidade,
Balouçar instável numa corda bamba.

Relva, 2020-04-05
Aníbal Raposo

quarta-feira, março 11, 2020
















CONTRANATURA

Nada mais ingrato
do que ver um gato
numa açoteia

em celibato,
preso, a recato,
sob a lua cheia.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-03-11

terça-feira, março 10, 2020



















HORIZONTES

Cada dia é um dia, nunca acaba a lida,
E em cada um corre água debaixo das pontes.
Procuro escalar a pulso a escada da vida
Sempre na procura de novos horizontes.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-03-10

segunda-feira, março 09, 2020




















CORONA

De todos os vírus que frequentemente
Nos atacam lestos, com grande jactância,
O que mais assusta, verdadeiramente,
É o virus feroz da santa ignorância.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-03-09

























SUSTENTAÇÃO
Insistentemente eu aviso as pessoas
Que num processo comum de criação
Díficil não é sonhar ideias boas
É concretizá-las com os pés no chão.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-03-09

quarta-feira, março 04, 2020



























ESPELHOS

Quando tudo parece correr mal
E és um peão sedento no deserto
A saída é bem simples e real
Passa só por olhares o espelho certo.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-03-04

quinta-feira, fevereiro 27, 2020


























Pátria

Vou te dizer, com todo o impudor,
Porque é que adoro cantar em português
Se nas palavras coloco o meu amor,
Gosto de tenham impacto no freguês.

De que me serve ter uma boa voz
Pisar o palco, voar mais além,
Para amargar no sentimento atroz
De que cantei mas não toquei ninguém?

Se é por receio da vulgaridade
Que em língua estranha se busca um outro aroma
Para entoar qualquer banalidade
Não vale a pena mudanças de idioma.

Gosto de ver uma lágrima a rolar,
Um riso aberto, uma chuva de emoções,
A cada verso que posso partilhar,
Olhos nos olhos, na língua de Camões.

Aníbal Raposo
Relva, 2020-02-27

quinta-feira, fevereiro 20, 2020



















ESTRADAS

Fico com a alma lavada
Quando termino o meu dia
Com uma boa caminhada
Nas estradas da melodia.

Aníbal Raposo
2020-02-20

Foto de Fiddle Oak

sábado, fevereiro 01, 2020


























A GESTAÇÃO DA MUDANÇA
A ideia prima
que lesta me surgiu
foi riscar bem fundo
num espelho de água
a palavra Verdade.
E assim criar um sismo,
pai dum maremoto,
capaz de submergir,
de forma permanente,
as margens da indiferença.

Relva, 2020-01-31
Aníbal Raposo
(imagem de Arno Rafael Minkkinen - Self-portrait, Foster's Pond, 2000)

sexta-feira, janeiro 31, 2020





















POESIA

Onde há vida
a poesia é.

A arte do poeta
consiste, simplesmente,
em revelá-la aos mais distraídos.


(No dia mundial da poesia)

Relva, 2016-03-21
Aníbal Raposo

quinta-feira, janeiro 30, 2020



















DESEJO
Voa devaneio meu
nas asas soltas do vento
e roça as ondas deste mar cavado
onde semeio o meu desassossego.
Voa, sem medos e liberto,
pois é sempre do ar que se vislumbra
a toca do saber, que é presa esquiva,
e os ramos onde se ocultam na folhagem,
os frutos mais saborosos da loucura.
Depois repousa, no fruir
da emoção da caça
e do morder dos pomos.
Descansa,
que Deus, que é Deus,
também o fez.
E procura o melhor poiso para o efeito:
a segurança da âncora das boas memórias.

Relva, 2020-01-31
Aníbal Raposo
(Wish - foto de Tommy Ingberg)

segunda-feira, janeiro 27, 2020















POENTE


Hoje
Vou deixar girar a mó.
Não me posso sentir só
Neste cantinho.
Ouve,
Tenho em frente um oceano.
Na cabeça o doce engano
Dum bom vinho.

Fez um belo entardecer.
O pôr-do-sol foi de morrer.
Uma nuvem de estorninhos.
Fim do dia.
Na cara um vento tão quente,
A lua em quarto-crescente,
E os cagarros dão-me tanga
Em sinfonia.

Hoje
Liguei à ilha montanha.
A linha aqui sempre se apanha
Por um triz,
Sorte! Consigo comunicar!
Liguei só para informar
Que sou feliz.



Aníbal Raposo
Rocha da Relva




























Estou aqui nesta mornaça,
Tenho a voz um pouco baça
Anda no ar uma graça,
Que é mulher.
Faço cantigas à toa.
Oh Natália dá-me a loa.
Que a poesia é coisa boa
E p’ra comer.

Hoje
Estou sozinho na fajã.
E bem sei que amanhã
É um novo dia.
Sigo
Aquela estrela cadente.
Há um cheiro aqui presente
A maresia.

O tempo corre devagar.
As uvas estão a pintar.
A vindima será boa
E estou contente
Fico para aqui pensando
(Já nem sei se estou sonhando...)
Que há um gosto amargo-doce
No poente.